Muitas são as formas como posso comparar o mito de Sísifo ao mundo da literatura.
Posso pensar, por exemplo, no esforço do leitor que busca o conhecimento: cada
leitura sendo como uma nova pedra levada montanha acima.
Com algum esforço, o mesmo vale para o escritor profissional, sempre tentando ter
algo a dizer e que a cada texto segue com o labor renovado da escrita.
Mas depois de trabalhar em uma livraria, certamente é o trabalho do livreiro — em
especial aquele que trabalha com livros usados — que mais se aproxima do trabalho
incessante de Sísifo.
Todos os dias, o livreiro se encarrega de organizar as estantes, receber novos
livros, analisar o estado dos volumes, atribuir-lhes o preço e realizar o cadastro no sistema. Tudo
isso com a obrigação ainda de atender os clientes com cordialidade.
Para muitos, na natureza precária do trabalho que enfrentamos nos dias de hoje, aí vão
repetidas jornadas de trabalho exaustivas que muitas vezes excedem os horários de
funcionamento da loja.
E ao fim do dia, com a batalha vencida e a pedra no topo da montanha, resta a certeza
de que no dia seguinte, apenas algumas horas adiante, ela estará na base do morro
mais uma vez, triunfante sobre o trabalho que foi feito no dia anterior.
Trocando em miúdos, não basta ao livreiro arrumar a casa para por em exposição
alguns livrinhos. O trabalho toma ares de uma punição eterna, em ciclos que se
repetem sem fim.
A esta altura talvez pareça terrível, mas não culpem os livros. Existe mesmo algo de
estimulante em passar tantos livros pelas mãos e descobrir não apenas os escritos, mas muito mais
que a experiência de trabalhar com livros usados pode trazer.
Se buscarem um culpado, apostaria na nossa necessidade de trabalho, por contextos
que não nos cabe explicar aqui. Somos uma sociedade, afinal, que tornou o trabalho
árduo e prolongado como sentido de viver. Os livros são o perfeito oposto disso, e
embora não possamos escapar ao mundo em que vivemos, seguimos esperando que
um dia até mesmo Sísifo se renda ao ócio da boa leitura.